"Gente inocente, ingênua, como por exemplo o ator judeu Löwy, teve de pagar por isso. Sem conhecê-lo, você o comparou, de um modo horrível, do qual jamais me esqueci, com inseto daninho e, como muitas vezes em relação a pessoas que me eram caras, você automaticamente tinha à mão o ditado sobre cães e pulgas (quem dorme com cães, acorda com pulgas). Lembro-me aqui em particular do ator, porque anotei as coisas que então você disse dele para mim, como uma observação: 'é assim que meu pai fala sobre o meu amigo, que absolutamente não conhece, só porque ele é meu amigo...'"
"Como em criança eu ficava junto de você principalmente nas horas das refeições, a sua lição principal era em grande parte sobre o comportamento correto à mesa. O que vinha à mesa precisava ser comido, não era permitido falar sobre a qualidade da comida - mas você frequentemente achava a comida intragável; chamava-a de 'grude', a 'besta' (a cozinheira) a tinha estragado. Como você por natureza tinha um apetite vigoroso e uma predileção especial por comer tudo rápido, quente e em grandes bocados, o filho tinha de se apressar, reinava à mesa um silêncio sombrio, interrompido por admoestações: 'Primeiro coma, depois fale', ou 'Mais depressa, mais depressa', ou 'Veja: já terminei de comer faz tempo'. Não era permitido partir os ossos com os dentes, mas você podia. O principal era que se cortasse o pão direito, mas o fato de que você o fizesse com uma faca pingando molho era indiferente. Era preciso prestar atenção para que não caísse restos de comida no chão, no final a maioria deles ficava em baixo de você. À mesa não era permitido se ocupar de outra coisa a não ser da refeição, mas você polia e cortava as unhas, apontava lápis, limpava os ouvidos com o palito dos dentes. Por favor, pai, me entenda bem, esses pormenores teriam sido em si mesmos totalmente insignificantes, eles só me oprimiram porque você, o homem tão imensamente decisivo, não atendia ele mesmo aos mandamentos que me empunha. Com isso o mundo se dividia para mim em três partes, uma onde eu, o escravo, vivia sob leis que tinham sido inventadas só para mim e as quais, além disso, não sabia por que, nunca podia corresponder plenamente; depois, um segundo mundo, infinitamente distante do meu, no qual você vivia, ocupado em governar, dar ordens e irritar-se com o seu não cumprimento; e finalmente um terceiro mundo onde as pessoas viviam felizes e livres de ordens e de obediência."
(trechos de "Carta ao pai", de Franz Kafka)
Kafka escreveu, entre os dias 10 e 20 de novembro de 1919, aos 36 anos, uma carta para o seu pai. Um texto de 50 páginas que ele jamais enviou.
Me arrependo por Kafka e por todos os filhos, que já nascem carregando a sina da obrigação de amar pessoas que não conhece. Me arrependo por todas as cartas aos pais que nunca foram enviadas. E por todas as que nunca foram escritas.
[10.04.008]
Ei, amei esse post, Kafka é incrivelmente genial com as palavras!
ResponderExcluirE compartilho desse seu sentimento, sweet!
beijo