19.6.13

O que seria subverter a tecnologia?

"Mídia e arte. Que fazem eles juntos e que relação mantém entre si? Dizer-se arte-mídia significa sugerir que os produtos de mídia podem ser encarados como as formas de arte de nosso tempo ou, ao contrário, que a arte de nosso tempo busca de alguma forma interferir no circuito massivo das mídias? Em sua acepção própria, a arte-mídia é algo mais que a mera utilização de câmeras, computadores e sintetizadores na produção de arte, ao a simples inserção da arte em circuitos massivos como a televisão ou a internet. A questão mais complexa é saber de que maneira podem se combinar, se contaminar e se distinguir arte e mídia, instituições tão diferentes do ponto de vista de suas respectivas histórias, de seus sujeitos ou protagonistas e da inserção social de cada uma. O objetivo deste livro é buscar respostas a essa questão" (p.8 e 9)

"A arte sempre foi produzida com os meios do seu tempo." E assim como Bach e Stockhausen, que "buscavam extrair o máximo das possibilidades musicais de dois instrumentos recém inventados e que davam forma a sensibilidade acústica de suas respectivas épocas", outros artistas tem se esforçado em fazer o mesmo com os meios atuais (p.9)

Por que, o "artista do nosso tempo, recusaria o vídeo, o computador, a Internet, os programas de modelação, processamento e edição de imagem? Se toda a arte é feita com os meios de seu tempo. As artes midiáticas representam a expressão mais avançada de criação artística atual e aquela que melhor exprime sensibilidades e saberes do homem do início do terceiro milênio." (p.10)

A apropriação que a arte faz do aparato tecnologógico contemporâneo "difere significativamente daquela feita por outros setores da sociedade, como a indústria de bens de consumo. Em geral, aparelhos, instrumentos e máquinas semióticas não são projetadas para a produção de arte." São feitas para produção em larga escala, como o caso do fonógrafo, que desembocou na poderosa indústria fonográfica, mas nunca para a produção de objetos singulares, singelos e sublimes. (p.10)

"A fotografia, o cinema, o vídeo e o computador foram também concebidos e desenvolvidos segundo os mesmos princípios de produtividade e racionalidade, no interior de ambientes industriais e dentro da mesma lógica de expansão capitalista. Mesmo os aplicativos explicitamente destinados a criação artística, como os de autoria em computação gráfica, hipermídia e vídeo digital, apenas formalizam um conjunto de procedimentos conhecidos, herdados de uma história da arte já assimilada e consagrada" (p.11) e colocados a disposição de "um usuário genérico, leigo e 'descartável', de modo a permitir a produtividade em larga escala e atender uma demanda do tipo industrial". (p.12)

"Existem, portanto, diferentes maneiras de se lidar com máquinas semióticas cada vez mais disponíveis no mercado eletrônico. A perspectiva artística é certamente a mais desviante de todas, uma vez que se afasta em tal intensidade do projeto tecnológico originalmente imprimido às máquinas e programas que equivale a uma completa reivenção dos meios." (p.13)


"O que faz, portanto, um verdadeiro criados, em vez de simplesmente submeter-se às determinações de aparato técnico, é subverter continuamente a função da máquina ou do programa que ele utiliza, é manejá-los no sentido contrário ao de sua produtividade programada" "É uma recusa sistemática de submeter-se à lógica dos instrumentos de trabalho ou de cumprir o projeto industrial das máquinas semióticas, reiventando, em contrapartida, as suas funções e finalidades. Longe de se deixar escravizar por uma norma, por um modo estandartizado de comunicar, as obras realmente fundadoras na verdade reiventam a maneira de se apropriar de uma tecnologia" (p.14 e 15)

"As técnicas, os artifícios, os dispositivos de que se utiliza o astista para conceber, construir e exibir seus trabalhos não são apenas ferramentas inertes, nem mediações inocentes, indiferente aos resultados, que se poderiam substituir por quaisquer outras. Eles estão carregados de conceitos, eles tem uma história e derivam de condições produtivas bastante específicas. A arte-mídia, como qualquer arte fortemente determinada pela mediação técnica, coloca o artista diante do desafio permanente de, ao mesmo tempo em que se abre às formas de produzir do presente, contrapor-se também ao determinismo tecnológico, recusar o projeto industrial já embutido nas máquinas e aparelhos, evitando assim que sua obra resulte simplesmente num endosso dos objetivos de produtividade da sociedade tecnológica."

"O artista busca se apropriar das tecnologias mecânicas, audiovisuais, eletrônicas e digitais numa perspectiva inovadora, fazendo-as trabalhar em benefício das suas ideias estéticas. O desafio da arte-mídia (ou mídia educação?!) não está, portanto, na mera apologia ingênua das atuais possibilidades de criação. A arte-mídia deve, pelo contrário, traçar uma diferença nítida entre  que é, de um lado, a produção industrial de estímulos agradáveis para as mídias de massa, e de outro, a busca de uma ética estética para uma era eletrônica" (p.16 e 17)

"Em nosso tempo, a mídia está permanentemente presente ao redor do artista, despejando o seu fluxo contínuo de sedução audivisual, convidando ao gozo do consumo universal e chamando para si o peso das decisões no plano político. É difícil imaginar que um artista sintonizado com o seu tempo não se sinta forçado a se posicionar com relação a isso tudo e a se perguntar que papel significante a arte pode ainda desempenhar nesse contexto." (p.22)


"Sabemos que a arte é um processo de constante mutação." "O mundo das mídias, com sua ruidosa irrupção no século XX, tem afetado substancialmente o conceito e a prática da arte, transformando a criação artística no interior da sociedade midiática numa discussão bastante complexa." "Com o cinema, por exemplo, os produtos da criação artística a da produção midiática não são mais facilmente distinguidos com clareza." "Há controvérsias se ele seria uma arte ou meio de comunicação de massa. Ora, ele é as duas coisas ao mesmo tempo,se não for ainda outras mais." (p.23)

"Não há também nenhuma razão para esses produtos qualitativos da comunicação de massa não serem considerados verdadeiras obras do nosso tempo, sejam elas vistas como arte ou não." (p.25)

"Assim como o livro impresso, tão hostilizado nos seus primórdios, acabou por se revelar o lugar privilegiado da literatura, não há porque a televisão e a Internet não possa abrigar as formas de arte do nosso tempo" (p.26)

"Talvez possamos com proveito aplicar à arte produzida na era da mídias o mesmo raciocínio que Walter Benjamin aplicou a fotografia e ao cinema: o problema não é saber se ainda cabe considerarmos 'artísticos' objetos e eventos tais como um programa de televisão, uma história em quadrinhos ou um show de banda de rock. O que importa é perceber que a existência mesma desses produtos, a sua proliferação, a sua implementação na vida social colocam em crise os conceitos tradicionais e anteriores ao fenômeno artístico, exigindo formulações mais adequadas à nova sensibilidade que agora emerge." (p.26)

"Com as formas tradicionais de arte entrando em fase de esgotamento, a confluência da arte com a mídia representa um campo de possibilidades e de energia criativa que poderá resultar proximamente num salto no conceito e na prática tanto da arte quanto da mídia - se houver, é claro, inteligências e sensibilidades para extrair frutos dessa nova situação." (p.27)

"Quem fazer arte hoje, com os meios de hoje, está obrigatoriamente enfrentando a todo momento a questão da mídia e do seu contexto, com seus constrangimentos de ordem institucional e econômica, com seus imperativos de dispersão e anonimato, bem como com seus atributos de alcance e influência. Trata-se de uma prática ao mesmo tempo secular e moderna, afirmativa e negativa, integrada e apocalíptica. Os públicos dessa nova arte são cada vez mais heterogêneos, não necessariamente especializados e nem sempre se dão conta de que o que estão vivenciando é uma experiência estética" (p.29)
[trechos retirados do livro "Arte e Mídia", de Arlindo Machado, 2007]


--
O que seria subverter a tecnologia?
Um dos pontos defendidos no texto de Arlindo Machado é que o artista, ao longa da história, se utiliza des mídias e dos meios técnicos disponíveis em sua época. A escolha desse suporte depende de uma séria de fatores, como por exemplo a afinidade técnica ou ainda um objetivo estético. Esse último ponto é extremamente relevante, pois deixa claro que o meio pelo qual a arte é passada, ou seja, o suporte em que ela se encontra influi na própria arte, modificando a forma como ela é percebida e alterando a maneira que a fruição estética da obra se dá.
Dessa maneira, nada mais natural que o artista explore as tecnologias disponíveis em seu momento histórico, com o intuito de se expressar artísticamente. No entanto, Machado também defende a ideia de que para que isso aconteça é necessário que, de alguma maneira, o artista subverta a tecnologia e o meio, fugindo do senso de apreciação comum no qual essa tecnologia está socialmente inserida. Afinal, se isso não acontecesse, estaria o artista se expressando ou apenas reproduzindo, com criatividade e perícia técnica, a função esperada desse meio?
Essa é uma discussão relevante desde o período industrial, onde a reprodutibilidade técnica vem por em cheque o conceito de arte. Marcel Duchamp já inferia esse debate com os seus ready-mades, onde ele subverte o conceito de um produto industrial, produzido em massa, e o coloca na posição de arte.
Discutir a necessidade de subverter o meio tecnológico com o propósito de gerar uma verdadeira expressão artística, no entanto, continua um tema relevante especialmente para a contemporaneidade. A convergência digital que presenciamos hoje faz com que os meios tecnológicos mesclem-se, permitindo uma maior complexidade na comunicação. Dessa forma, cabe ao artista genuinamente contemporâneo gerar uma linguagem estética própria a partir da miríade estilística já existente e, além disso, subverter a tecnologia escolhida como suporte para sua obra. Isso tanto como forma de explorar as possibilidades não previstas originalmente, ou seja previstas mercadologicamente, da tecnologia; como também, com o intuito de buscar o seu próprio diálogo, estabelecendo ou não, a comunicação artística pretendida.


O MEIO É A MENSAGEM.
AGORA SUBVERTA O MEIO.

Nenhum comentário:

Postar um comentário